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Foto do escritordoikeizo

COTIDIANO - Época em que desejei o mundo fora de mim


Eu não defendo que é possível haver a extinção do sofrimento sem que haja a extinção do mundo. Amigos, eu revelo o mundo, o surgimento do mundo, a extinção do mundo e o caminho da extinção do mundo nesse corpo de uma braça, dotado de mente e coração.  

(“Samyuttanikaya”Vol.1,62,18-22)

Eu tinha 18 anos quando o monge missionário que atuava no Havaí veio em minha faculdade lecionar uma aula especial. Ele começou a aula desenhando um quadrado composto de 9 pontos. Voltou-se para os alunos que ainda não tinham percebido, e disse: liguem os 9 pontos com quatro linhas retas, sem tirar o lápis do papel.

Alguns alunos que tiveram alguma idéia foram desenhar no quadro negro com ar de quem sabiam tudo e logo depois voltaram constrangidos para seus próprios lugares, quietinhos, inclusive eu. A resposta foi revelada pelo monge mesmo. No momento em que a figura de um guarda-chuva foi traçada com quatro linhas retas e estendidas para fora do quadrado, todos os atrevidos saborearam um gosto amargo, ocultando arrependimento e surpresa.

“Acredito que todos procuraram enquadrar as linhas no quadrado. Se o interior do quadrado é o senso comum, sua parte exterior é algo novo que vocês ainda não encontraram em suas vidas. Para conseguirem isso, a maneira mais prática é sair do Japão”, disse o monge experiente.

Foi no fim do verão, quando estava tateando a melhor maneira de passar as longas férias da faculdade que as palavras do monge ressoaram no meu coração. No mesmo dia dessa aula, à noite resolvi viajar para a Índia. Consegui um trabalho temporário através do meu amigo e comecei a juntar dinheiro para a viagem. Passado meio ano, no início do período de férias da primavera parti. A estada durante um mês na terra sagrada budista se passou enquanto estive assustado com aquela solidão peculiar que sucede a diarréia, com os temperos ferozes das barracas de rua, os olhos do povo indiano insistentemente brilhantes jamais vistos no Japão. Quando desembarquei com o rosto impregnado de masala no aeroporto internacional de Kansai em Osaka e me sentei na poltrona confortável do trem como se estivesse flutuando, sem ser sacudido pelos gritos dos vendedores de chá, doce, nem trombadinhas, senti nitidamente que eu estivera no exterior do quadrado. Depois de voltar para Kyoto, até contei sobre essa extraordinária sensação para meus amigos. Quando me dei conta fiquei alucinado com essa experiência de viagem solitária e passei a gastar todos os períodos de férias com viagens, e até o período de aulas também, trabalhando para adquirir passagens aéreas, portanto, toda minha vida estudantil foi dedicada à viagens, para alcançar “algo” que existiria no exterior do quadrado.

Tibete, Oriente Médio e América Latina. Dez anos se passaram, e estou no Brasil agora. Teria o meu exterior do quadrado sido marcado por diversas experiências? Depois disso o mundo teria ficado mais amplo?


Diria que isso, na verdade, é o de menos, pois o mundo não existe a não ser criado por cada sujeito. Até a praia única do planeta que se espalha pela costa fluminense foi a mesma coisa que a impressa em qualquer cartão postal, até o momento em que o termo “linda” escapou com um suspiro de minha boca, sentindo o calor na areia. O Brasil próprio não passou de mera região tropical, até o momento em que eu soube que a palavra “saudade” se referia à alegria acompanhada de nostalgia, abraçando quem chega ou/e se vai.

O mundo não ganha o seu contorno exceto através das imagens que o sujeito as experimenta com o seu olhar e ouvido, tentando verbalizá-las o máximo possível. Nunca é dado nem preparado por alguém, seja o exterior, seja o interior dele.


Shaku Shun-nen

45 visualizações1 comentário

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1 Comment


isabelpeisa
May 21, 2018

Que texto mais lindo!!

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