top of page
Buscar
  • Foto do escritordoikeizo

Retornar a nossa origem

Há vários tipos de pessoas na praia. Você vê lá aqueles que olham para o mar, os que ficam de costas para o mar. Algumas pessoas conversam com seus companheiros, e outras leem livro sozinhas e deitadas. E também tem vendedores de chá mate, salgados, e pessoas os compram. Quando ocorre um arrastão, centenas de banhistas ficam em pânico. Por outro lado, por exemplo, quando o Papa Francisco visitou o Rio de Janeiro, a praia de Copacabana virou uma igreja envolvendo três milhões de pessoas.

Todos se reúnem na areia branca e fina, de formas variadas. Assim, curtem o mar. O mar, porém, parece indiferente às coisas da praia, mandando continuamente as ondas para a beira do mar e repetidamente engolindo-as de volta.

Mesmo quando ninguém vê o mar, o mar obviamente continua a ser o mar. O mar está vivo mas, de certa forma, imutável, mantendo sua forma originária.

O mar é origem de todos os seres, seja humano ou animal, seja sacerdote ou ladrão. Originalmente o mar não faz distinção entre as pessoas. Por outro lado, na vida cotidiana, a gente distingue minuciosamente uma da outra. O padre é o padre, o ladrão é o ladrão. Se não houvesse esta distinção, a vida cotidiana não funcionaria bem. Entretanto, a gente percebe algo comum no fundo dos seres. Um dia, todos, seja presidente da república ou morador de rua, estiveram no regaço de sua mãe, na temperatura quente, sendo protegidos, sentindo o ritmo da primeira pessoa que eles conhecerão.

Ao se aproximar do mar, a gente se sente, não sei por que, amparada. Talvez, o ritmo das ondas faça a gente sentir a grandiosidade do mar, uma dinâmica de vida originária.

O mar aceita qualquer tipo de ser. O mar não faz a distinção. No budismo, uma das características da sabedoria do Buda é a de não distinguir. Gostaria de citar aqui uma frase do mestre Shinran.

“Seja ignorante ou sábio, até mesmo aqueles que cometem as graves ofensas e caluniam o dharma, são conduzidos igualmente, como todos os rios desaguam no mar, ganhando um único sabor."

Todos os rios, ou seja, diversas correntes de água doce se unem no mar, e se transformam, afinal, em água salgada. Portanto, do ponto de vista do Buda, os seguidores do budismo e aqueles que caluniam o dharma, são iguais, compartilham a mesma origem.

“Espera aí, Bonsan Doi! Você está sentimental demais, não? A origem importa tanto?” Talvez haja quem ache meu discurso tão sentimental ou saudosista. Gostaria de responder a estas indagações com uma expressão ainda mais poética.

“Como quem remasse uma canoa no lago, a gente entra no futuro olhando para trás.”

Para seguir em frente é preciso saber por qual trajetória você passou. Nosso budismo, o caminho da Terra Pura é algo parecido. Seguimos nosso caminho, visando a nossa origem.

Na época, quando eu servia aqui no Betusin, Templo Honpa Hongwanji do Brasil, um dia fui incumbido de realizar um ofício memorial de 13º ano de falecimento. Na véspera do ritual, ninguém compareceu na recepção. Esperei meia hora no templo, e uma senhora chegou ao altar. Ela estava sozinha. Segundo ela, seu avô era monge, a mãe era seguidora do Shin Budismo. Ela recitava em casa todos os dias o Shoshingeu. Então, só nós dois começamos a recitar o Shoshingue em homenagem a sua mãe.

Ela também recitou em voz alta o Shoshingue, que aprendeu com sua mãe. Depois do ofício memorial, nós conversamos. Ela começou a me contar sobre sua religiosidade. Ela frequentava outra religião fielmente durante vinte anos. Porém, ela emitia o nome do Buda Amida, namo-amida-butsu, espontaneamente, diante de qualquer divindade. Ao ouvir esta história, os primeiros dois versos de Shohsinge me surgiram:


帰命無量壽如来 (Kimyo muryo jyunyo rai)

南無不可思議光 (Namo fukashigui ko)


Atendo ao chamado do Tathagata da Vida Imensurável

Refugio-me em sua Luz que transcende o pensamento


Estes versos são um resumo do Shoshingue. O termo kimyo, traduzido como atender ao chamado do Buda Amida, é composto de dois ideogramas chineses. Um representa o retorno, e outro, a vida. Desta forma, há quem o interprete como retornar à origem da vida ou a vida retornar. Por outro lado, mestre Shinran nos expõe o sentido do termo da seguinte maneira: o ideograma chinês de retornar significa entregar-se, e o ideograma de vida se refere à condução, orientação, ensinamento do Buda Amida. Assim, o mestre define o sentido do termo kimyo dizendo que “o kimyo é o chamado imperioso do Voto Original do Buda Amida”.

Desta forma, o kimyo-muryo-junyorai é a orientação do Buda Amida. Buda Amida continua a nos chamar desde o passado inimaginavelmente remoto. Este chamado imperioso é tão irrecusável que não podemos deixar de atendê-lo. Ou seja, para quem não tem mais caminho senão o caminho da Terra Pura. O Voto Original é voltado para nós. O Buda Amida jura que nos abraça e nunca nos abandona. A recitação do Nome do Buda Amida se concretiza entre o chamado do Buda e nosso atendimento a este.

Para todos os seres, inegável é a aspiração a retornar ao lugar onde sua vida começa. Vejam os pássaros. Eles possuem o desejo intenso de retornar a seu lar, o ninho, ou seja, sua origem. Antigamente, havia o pombo-correio, porque o pombo podia voltar sem desvio para seu ninho, voando até mil quilômetro de distância.

Segundo o sutra, na Terra Pura há diversos pássaros a cantar o dharma, ensinamento do Buda Amida. Eles se reúnem no mesmo lugar e no mesmo horário todos os dias para orientarem pessoas ao dharma.

Quando eu servia no Betsuin, durante algum tempo um pombo morava no campanário um pombinho. Pareceu-me que este pombo havia nascido prematuramente. Devido ao desenvolvimento insuficiente de seu corpo, não conseguia pular o muro e voar para chegar a seu alimento. Quando subi lá para tocar o sino, ajudei o pombinho a se libertar para fora.

Ao passar-se um ano, já tinha me esquecido desse pombo, o encontrei no chão do campanário. Talvez por causa de alimentação precária da época, sua cabeça não tinha se desenvolvido como a dos outros, e seu corpo também era menor que o dos outros. Pelas características o reconheci logo e achei que ele voltou a seu lugar, onde ele faleceu logo depois, no dia 25 de novembro de 2016. Foi enterrado no jardim, perto do portão do Templo.

Em japonês, a palavra pássaro, tori, é aplicada à direção oeste. Em relação ao tempo do relógio, ele indica por volta de seis horas da tarde. O horário do por do sol. Término do dia.

Aquele pobre pombinho passou seus últimos momentos no seu local de nascimento. Durante a vida tão curta, ele carregou no fundo do corpo a memória de onde ele nasceu.

Mestre Shinran expressa o ir nascer, nascimento na Terra Pura como “retornar à capital da natureza do dharma” ou “quando realizamos espontaneamente a iluminação do Tathagata, retornamos à capital da natureza do dharma”.

Ao refletir sobre mim mesmo, acabei chegando a um lugar tão distante da iluminação do Buda, passando por uma rota tão complexa que não posso mais lembrar. Mesmo assim, em algum canto do meu coração ainda deve se manter a memória de minha origem. Atendo ao chamado condutor do Buda Amida que me leva à Terra Pura ao oeste. Namo-amida-butsu.

48 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page